segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Nada de indulgência

Ser indulgente com o outro como forma de compensar algum tipo de história de privação que marca o outro é reforçar a exclusão. Romper com a indulgência e com a autoindulgência é fundamental para a emancipação que se busca. O desejo de poder possui muitos disfarces, é repleto de ardis. A subalternidade é reproduzida pelo paternalismo, pele assistencialismo e pelo prêmio compensatório, que cega o outro na cegueira da paixão. Um tipo de violência que pouco se compreende como violência, pois uma violência cheia de sorrisos, abraços, afetos e palavras bonitas. A armadilha nem parece ser uma armadilha. Parece ser a própria re-existência e potência. Mas no fundo é subalternização, exclusão e apagamento. Rejeitar o brilho, recusar o lugar que o bondoso oferece para o outro possa estrelar, romper com o desejo de celebridade que é próprio do subalterno quando capturado pela subjetividade narcisista e acumuladora de likes do opressor, enfim, são muitos os desafios. Nenhum é fácil de ser enfrentado. Mas precisaremos de alguma honestidade para ultrapassar esse imbróglio paralisante.

quinta-feira, 22 de agosto de 2019

Ganhadores

A cada dia, minha tendência é acordar relinchando e dando coice. Por isso, preciso estudar muito. Não posso me dar ao luxo das celebridades, que brilham sem ter trabalhado duro. O estrelato não foi feito para mim. Tento não cair abaixo da linha de mediocridade intelectual. Tento ficar na linha e aqui e acolá ficar um pouco acima dela. Leio muito o que minhas colegas e meus colegas escrevem, para não ficar por fora dos lances interessantes que levantam. Mas quem nasceu genial é para brilhar, o que não é o meu caso, graças a deus. Nasci para ralar e viver com acumulação negativa de capital. Ser perdedor faz parte da minha vitória existencial. O universo dos ganhadores é assustador. É repleto de sujeitos tóxicos.

terça-feira, 20 de agosto de 2019

Recusa anti-intelectualista

A recusa anti-intelectualista da vida acadêmica durante anos e anos por parte de militantes de esquerdas na universidade deu uma ajuda substancial para o bolsonarismo ter força para destruir o que resta de vida acadêmica no país. Houve uma continuidade, mesmo que por motivos diferentes. O preço a ser pago está sendo altíssimo. Esquerda e direita agiram para esvaziar o sentido da vida acadêmica, a primeira pela negação de aderir ao "produtivismo", a segunda pela redução da universidade a quem aderiu ao "produtivismo" negado pela esquerda. A universidade foi implodida nessa convergência estranha de dois tipos de anti-intelectualismo populista. Tempos sombrios.

Anarco-comunista

Hoje, acordei com vontade de dizer a verdade, mas é temerário dizê-la em tempos sombrios e ditatoriais como esses. Mas sim, sou comunista. Sempre achei tão bonito ser comunista. Mas não sou comunista do partido, do estado nem do capital. Sou anarco-comunista. Bonitinho, né? O problema é que a gente não faz nem cócegas no sistema do capital-estado. Somos meio café com leite. Nem fede nem cheira como diz aqui na minha terra. Mas tenho a impressão que se a gente não voltar à ação direta contra o sistema do capital e da sua representação política, seja de esquerda ou de direita, a gente vai morrer na praia. Se bem que morrer na praia é uma morte bonita, né?

Estado e mercado universais

Quando a ex-querda consentiu que "economia de mercado" e "estado" são componentes universais da vida social, desrealizou o campo das lutas anticapitalistas e foi punida pelo poder senhorial a quem prestava serviços e homenagens. Achavam que iam ser admitidos. O caso de Lula é dramático nesse sentido. Quando a maioria da esquerda deixou de ser anticapitalista, o campo ruiu. Tornou-se desnecessário, pois a única esquerda possível passou a ser a do liberalismo social. E o liberalismo social perdeu historicamente suas condições de realização. Estamos vivendo uma situação inusitada, a direita está incitando a esquerda a voltar a ser anticapitalista, mas a esquerda capitalista não quer largar o osso que é garantido por participar do sistema de representação política/corrupção, que é o modo de manter o separado ainda mais dividido.

Uma censura e tanto

Só tem uma coisa interessante nesse lance todo. A direita finalmente censurou a ex-querda. Esta está desautorizada a ser a proprietária das "soluções capitalistas". Solução capitalista é coisa da direita, diz a direita com ênfase, tentando convencer a esquerda a se contentar em ser anticapitalista, mas a ex-querda não quer, deseja muito manter a hegemonia sobre as soluções capitalistas. Ou seja, não é vitória da direita, é a ex-querda que derrotou a si mesma. E a tal da governabilidade não passava de uma fantasia, fantasia em nome da qual se fez de tudo para não haver luta contra o sistema do capital.

Rebaixamentos entre vergonha e orgulho

Nos últimos tempos, o rebaixamento de expectativas de realização foi a principal arma do sistema de opressão. Mas isso já é usual desde a segunda metade do século XIX, pelo menos. Contudo, houve uma novidade. Fazer com que o rebaixamento da expectativa de realização de sentido e valor seja celebrada pelo agente posto em subalternidade como motivo de orgulho. Ou seja, fazer com que pessoas se sintam realizadas na desrealização. Desde 2014, esse procedimento entrou em pane. O orgulho do subalterno na desrealização vivenciada como fantasia de sucesso foi quebrado. Voltou-se a outro modo de subjetivação no contexto da sujeição que faz com que as pessoas voltem a acreditar que cada qual deve estar no seu cada qual, cada um se realizando como pode, onde pode, onde é autorizado. A celebração do "eu sei o meu lugar" é um dos gozos mais estranhos, mas está em oposição ao outro gozo que projetava de modo fantasioso um lugar seu que não era o seu de fato nem de direito (na chave hegemônica). Entre vergonha e orgulho, as classes populares e as "classes médias" de ocasião mergulharam numa profunda queda em direção ao nada, do nada ao nada. O pior é que isso nem sempre tem servido como movimento de tomada de consciência da condição proletária, que é justamente marcada pela nadidade. O ser é o senhor. Os outros são o nada. O medo de tocar nesses assuntos delicados tem impedido a maior parte de intelectuais insurgentes de problematizar a situação contemporânea.

quinta-feira, 8 de agosto de 2019

Fazer apelos?

Ser de esquerda virou ficar fazendo apelos nas redes sociais, nas bolhas de esquerda, para que os dominantes brutais deixem de ser dominantes brutais em nome da Razão. E os dominantes brutais continuam dando gargalhadas, desafiando para a briga, dizendo: pois, venham nos impedir! E a esquerda posta alguma selfie no Instagram para descarregar a emoção de quem é integrado e depois voltar a fazer apelos para que os senhores da guerra se tornem bonzinhos e amáveis. Ser de esquerda é isso? Fazer apelos? É ser cínico e ridículo ao mesmo tempo?

O bicho vai pegar

E o pessoal que adora estar em evidência, ser celebridade, mas que foge do trabalho de base como o diabo foge da cruz? Vivem aprisionados por fantasias fragmentadoras e sem conexão com suas condições proletárias. O desejo de não ser proletário e de ser um consumidor competente rico e integrado se tornou fonte de muito adoecimento psíquico. O orgulho proletário, base da resistência do trabalho vivo contra o trabalho morto, foi destruído pelo liberalismo social. Para muitos, a universidade em vez de ser preparação para o mundo do trabalho virou refúgio contra o mundo do trabalho, pois o mundo do trabalho é, em geral, o lugar da desrealização maior. Ocorre que é também o lugar da luta do trabalho vivo contra o morto. Por vezes, a Universidade funciona como fuga disso. Como se fosse possível se exiliar no campus. Aí, quando o campus atua como organização do trabalho, desperta ansiedade e angústia. Faz tempo que já é empresa, mas apenas agora que a moratória está ameaçada que um monte de gente está se desesperando. O bicho vai pegar. Vai ser um massacre. O capitalismo sempre foi pós-trabalho. Isso inclui estudantes e professores. A fábrica adoece. Mas se pode lutar contra ela, fazendo da disciplina da fábrica a base da contra-disciplina revolucionária. Sair da crise, que é uma crise da esquerda, vai depender da reemergência de lutas anticapitalistas desde baixo e contra quaisquer hierarquias controladoras com suas cúpulas ávidas por acumulação. O boicote da ex-querda às forças antissistêmicas produziu o bolsonarismo como continuidade do dilmismo e do lulismo. São continuidades impressionantes, só troca de sinal. Opostos complementares. O afundamento da possibilidade de recusar o existente é a continuidade. É a luta contra o existente e não a conciliação com o existente que vai dar o rumo a seguir.