domingo, 9 de março de 2014

DROGAS ILÍCITAS: UMA REFLEXÃO SEMPRE PROVISÓRIA sobre a "solução de um problema".

Em primeiro lugar, precisamos pensar e pensar não é reproduzir ideias dadas, preconceitos, opiniões, e, muito menos, descarregar sobre os outros as nossas próprias distorções, principalmente, quando estão ancoradas e protegidas por uma senso de normalidade majoritário que, em vez de nos incitar a pensar, nos faz instrumentos de mascaramento que inibem a criação de novas problematizações. Em segundo lugar, as drogas ilícitas não são sintoma da pobreza, da exclusão, do desemprego e dos males sociais, essa é uma maneira "fácil" de reduzir a questão e desviá-la do principal. As drogas ilícitas não possuem "solução", não são um problema nesse sentido, buscar "solução" para o "problema" das drogas ilícitas é o modo como se produz socialmente o dispositivo de poder por meio do qual se faz o enquadramento daquilo que não se quer discutir publicamente quando o assunto é etiquetado em torno do "problema das drogas". Qual seria então o "grande segredo" que gira em torno do uso de drogas ilícitas que a "sociedade" não ousa e não quer discutir abertamente? O grande segredo é que não há "solução" para o "problema" das drogas ilícitas, uma vez que elas não são um problema para o qual se precisaria de solução. O modo de abordar "problema-solução" é o pior narcótico do pensamento sobre a questão. As experiências das pessoas em torno do uso de drogas ilícitas apontam para questões que estão sendo interditadas pelas agendas políticas hegemônicas. Quais seriam essas questões? Algumas pistas: a) Sofrimento e desrealização subjetiva diante das diversas formas de embrutecimento ligadas ao sistema de busca pelo sucesso, pelo poder, pelo dinheiro. b) Irrelevância das formas de subjetivação constituídas como mercados de bens de consumo que oferecem "satisfação ao cliente" sem jamais serem capazes de tematizar a questão do sentido da existência. c) Bloqueios das formas de erotização da vida pessoal que passam pelas conexões entre diversos devires, prazeres e outras formas de experimentar a constituição de uma corporalidade que possa ser própria. É o isolamento, a segregação do uso da droga ilícita, deslocando-o do contexto transformacional de devires e prazeres nas formas de auto-erotismo e erotismo compartilhado, que são modos de negação da "pornografia", afinal, a pornografia é puritana, envolve a exacerbação da vergonha, da culpa e do ressentimento produzidos pela imposição de modelos de subjetividade heterônomos e negadores da auto-constituição das práticas eróticas, estéticas, artísticas, filosóficas, corporais que fazem da subjetivação um processo de produção desejante como devir-livre. d) Se a questão do uso de drogas ilícitas gira em torno de experimentações inseridas em contexto de realização, a questão da desrealização que está ligada também ao uso abusivo de drogas ilícitas passa pela discussão da produção social de indivíduos sob o signo da infelicidade. A felicidade, como principal objeto da política, é neste ponto o elemento catalisador para se pensar o uso da droga ilícita não como um "problema", mas como uma problematização da natureza da vida social com a qual estamos nos conectando enquanto pessoas e coletivos. e) No caso específico do uso abusivo de crack, parece haver uma desrealização que produz a prática abusiva pela dissociação entre formas subjetivas de desterritorialização e formas subjetivas de reterritorialização que exigem composições estéticas com repertórios e recursos múltiplos. O uso abusivo de crack aponta para uma desrealização dos meios imaginários de constituição da auto-erotização e erotização compartilhada. A produção social das formas de sofrimento, de dor, de envelhecimento, de suicídio, de isolamento, morte em vida, de esvaziamento do sentido da existência, de medo diante da morte, de medo diante da exigência de "felicidade", de "sucesso", etc. A arena pública poderia deslocar a agenda de discussão para aquilo que a fórmula "solução para o problema das drogas" tenta esconder e a guardar a sete chaves no fundo de um baú para o qual uma simples abertura resultaria numa nova caixa de Pandora. E as formas majoritárias de opinião que buscam mascarar a tematização do que há de cruel no funcionamento "normal" da vida contemporânea estão hiper alertas, talvez sob efeito de remédios de incitação de impotências, dirigindo veículos em alta velocidade sem visualizar o precipício que nos cerca e circunda e também nos cega uma vez que narcotizados vamos nos reproduzindo sob as formas de uma insularidade imaginária, paranoica, delirante, perversa e suicida diante do destino individual e coletivo de nós mesmos. A análise proposta não é psicologizante, ao contrário, parte do pressuposto que é importante evitar a análise de entidades clínicas enquanto tais, dadas. Culpa, sofrimento e infelicidade são temas que brotam das reflexões de Nietzsche sobre as formas da má-consciência e do ressentimento na vida social, não são temas psicológicos, mas genealógicos. Não é possível falar sobre o sofrimento alheio enquanto cientistas humanos, pois já não almejamos ser cientistas sociais, como o século XVIII nos legou (Aron), nem cientistas humanos, como o século XIX produziu (Les mots et les choses), trata-se de elaborar uma anti-sociologia, o sofrimento é inefável, é uma experiência subjetiva irredutível, Hannah Arendt escreve belas páginas sobre isso na Condição Humana, a questão da felicidade é o tema centra da política, segundo Michel Foucault. Liberdade e felicidade são dois temas foucaultianos que gosto muito. A desrealização de qualquer condição produz socialmente indiferença, já sobre recreativos e felizes, se for no sentido do tipo de satisfação que é gerado pela não-condição de cliente de traficantes ou de cliente de burocracias científicas universitárias, qualquer desrealização implica morte, Butler tem belas páginas sobre isso.

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